sábado, 28 de novembro de 2009

Os labirintos de Elza

Parte XII


É impressionante o acudimento de fatos cuja única função parece ser o embotamento da mente e da razão, e como isso talvez seja percebido apenas com o distanciamento no tempo, e na contabilidade das perdas. Quantos sinais terão vindo de Elza, e eu, perdido no emaranhado dos abraços da paixão, não os percebi. A minha profunda paixão por Elza foi, e ainda é, um fato marcante na minha vida, e foram as emoções dessa paixão quem me impediu, talvez, de melhor perceber os muitos sinais que Elza involuntariamente me enviava.
Assim que Elza se afastou levada pelo taxi ao seu mundo por mim desconhecido, praticamente refiz os mesmos caminhos, e estive nos mesmos lugares nos quais estivemos juntos desde o nosso encontro naquela tarde.
Foi algo de muito intuitivo, o que, passado o rolo compressor do tempo, este quase me fez mergulhar em profundo sentimento de culpa. Assim que Elza se foi, e eu maquinalmente comecei a caminhar e a pensar equivocadamente em alguns detalhes desse nosso encontro, percebi-me próximo ao local da exposição de telas de pintura que, apesar da hora, ainda estava aberto à visitação. Sem entender porque, entrei nas salas de exposição, e fui direto ao quadro diante do qual Elza teve aquele calafrio.
Fiquei por algum tempo observando o quadro. Lembro-me que era quase quadrado, e suas dimensões certamente tinham mais de um metro de lado. De fato, era um trabalho um tanto sombrio. Eu diria ser uma pintura expressionista, talvez retratando algum estado de alma, não necessariamente do próprio artista. Se me lembro bem, seu título tinha algo a ver com “Factuais”; suas cores eram sinistras, escuras, com possíveis esboços de rostos um tanto distorcidos e medonhos traspassados por um emaranhado de traços sinuosos; algo inquietante, penso hoje. Naquela época, e para mim, era apenas isso, um trabalho de pintura inquietante, e só. Talvez não o tivesse sido para Elza. Obtuso que andava por minha paixão por Elza, sequer me permiti refletir seriamente no porque a visão do quadro teria provocado nela uma tal reação, da qual, com visível esforço, se recuperou logo. Naquela época, também equivocadamente, atribui isso a um excesso de sensibilidade, o que me agradou.
Saí da exposição, e ainda caminhei por algum tempo aproveitando o frescor da noite e das lembranças dos detalhes daquele nosso encontro; das nossas mãos entrelaçadas; da maciez e do calor do seu corpo pela primeira vez colado ao meu; do seu cheiro primoroso; dos seus sorrisos; das coisas inconsequentes que dissemos, e julguei inconsequente o que Elza disse no restaurante quanto a eu não dever apostar fichas nela por tratar-se talvez de uma doida; da sua alegria contagiante. Eu era um apaixonado.
E foi com esse pensamento que rumei para casa e, revolvendo-me na cama, adormeci.

sábado, 21 de novembro de 2009

Os labirintos de Elza

Parte XI


Eu não hesitaria atender ao seu convite e, com ela, eu mergulharia na eternidade. Estávamos muito próximos, o calor vindo do seu corpo e o seu perfume inebriavam-me. Nesse momento, houve o leve toque das nossas mãos e, no instante seguinte, estavam entrelaçadas com suavidade. Um momento de raro enlevo. Então, sussurrando, falei-lhe do meu sentimento, de que, ao seu lado, em qualquer mundo, eu abraçaria com ela a eternidade. Elza, pela primeira vez cedeu, aconchegou-se, melhor entrelaçou sua mão à minha, envolveu meu braço com a outra mão, e recostou sua cabeça ao meu ombro. O toque com o seu corpo, também pela primeira vez, envolveu-me numa onda de calor e paixão. Elza transpirava os mesmos sentimentos. Beijei-lhe os cabelos à altura da testa, sorvi deles todo o frescor, e Elza cedeu a um ligeiro tremor de gozo que, pareceu-me, há muito era desejado. E assim, muito próximos, olhamos demoradamente as outras telas restantes dessa série.
Um cartaz convidava aos visitantes a verem outros trabalhos do mesmo artista em uma sala contígua. Para lá rumamos, ainda de mãos dadas e, felizes.
Nessa outra sala, havia telas de várias tendências, talvez numa demonstração de que o artista fosse bastante eclético quanto aos variados gêneros de pintura. Havia, desde retratos perfeitos, a marinas e casarios, como que demonstrando as várias fases de amadurecimento que o artista experimentou, todos, excelentes trabalhos, que nos dava prazer olhar, e Elza mostrava-se radiante e bela, entusiasmada sem ser pueril. Em um instante seguinte estávamos, porém, diante de um quadro sombrio que provocou estranha atitude em Elza. Assim que fixou os olhos no quadro, algo a fez soltar minha mão. Em seguida ela cruzou os braços como que a proteger-se de um calafrio. Percebi nela um ligeiro tremor e, por breve momento, sua expressão era de medo; logo em seguida, com visível esforço, afastou-se em direção à rua. Eu a segui. Já na rua, ao ar fresco da noite que caía, Elza se refez. Perguntada sobre o que estava ocorrendo, ela disse não ser nada, apesar do ainda visível esforço que fazia para mostrar que tudo estava bem. E quase que seguindo a um impulso, Elza retomou minha mão e pareceu nos afastar daquele lugar. Por muito tempo eu não compreendi o que aconteceu, e Elza jamais falaria para mim desse momento.
Caminhamos um pouco pela rua observando desinteressados algumas vitrines. Daí a pouco estávamos, sem o pretendermos, diante de um restaurante. Eu disse para Elza que eu morria de fome, e que não esperava dela uma desfeita ao recusar o meu convite para um jantar. Aparentemente já refeita do acontecido, sorriu, e nomeou-me como um lobo faminto, do que jamais, também, pude perceber o sentido no qual falava.
Certamente devido à hora, pois a noite apenas começava, o restaurante estava quase vazio, e não foi difícil conseguirmos mesa em meio às muitas reservadas. O lugar ainda era bom, o que nos permitia relativa privacidade. Fizemos os pedidos. Quando sugeri um vinho, Elza declinou dizendo algo relativo ao álcool, mas deixou-me livre para escolher. Escolhi o mesmo que ela: água. A comida era muito boa, e os momentos foram melhores ainda: comíamos, bebíamos, conversávamos sobre muitas coisas, ríamos de tudo. Depois, já saciados, ocorreu algo que me pareceu enigmático, o qual, como tantas outras coisas, eu viria a compreender muito tempo depois.
Em um daqueles momentos nos quais uma conversa divertida parece querer ceder lugar para questões mais sérias, e depois de brevíssimo silêncio durante o qual percebi Elza olhar para lugar algum como que a refletir sobre algo, ela estendeu sua mão sobre a mesa e alcançou a minha mão que repousava sobre a mesa. O toque sobre a minha mão foi morno e úmido, o que me aparentou que Elza vivenciava algum tipo de forte emoção. Depois, fitando nossas mãos com um olhar como que perdido e introspectivo, ela disse algo que também naquele momento não entendi. Ela dizia para que eu não apostasse muitas fichas nela, pois que ela bem poderia ser uma doida. Foram essas suas palavras, enquanto pressionava e envolvia a minha mão com visível e crescente emoção. Eu posei minha outra mão sobre a sua, e disse-lhe algo para tranqüilizá-la e, em um instante seguinte eu a vi fazer o mesmo gesto de outras vezes: o de olhar para lugar ou coisa alguma como que a ordenar seu pensamentos. Em seguida, com o mesmo sorriso que me desmontava sempre, ela dizia que precisava ir para casa.
Em cada uma das mesas havia um esguio vasinho que trazia uma rosa vermelha. Recolhi a que estava sobre a mesa que ocupávamos e a ofereci a Elza. Depois, pedindo ao garçom para incluir a rosa na conta. Disse-me ele que a flor seria cortesia da casa; paguei, e saímos à rua.
Instantes depois eu via Elza embarcar em um taxi. Ainda perambulei por longo tempo pelas ruas refletindo sobre todos os momentos já vividos com Elza, perdido que eu estava entre os enigmas que era a sua vida.