domingo, 20 de dezembro de 2009

Os labirintos de Elza

Parte XIV


Seria tanto o desejo de nos encontrarmos, que nos antecipamos em mais de meia hora para o encontro. Eu também já havia me antecipado na compra dos ingressos. Assim, tivemos mais tempo para estarmos a sós, longe da aglomeração de pessoas. Andávamos abraçados, olhando para tudo e para nada, apenas gozando as nossas presenças mútuas, felizes; e se Elza decidisse que não iríamos ao cinema, para mim estaria ótimo, pois o meu maior desejo era apenas gozar a proximidade com o seu corpo deliciosamente macio, e estar na atmosfera do seu perfume quase natural. No entanto, fomos ao cinema.
Eu já havia estado com outras garotas em sessões de cinema, porém, nenhum outro encontro desses poderia ser comparado àquele com Elza. Creio mesmo que, pela primeira vez, ela tenha de fato se entregado às circunstâncias de um encontro; e sem ser pueril, ela transbordava alegria e felicidade gozando a simplicidade de devorar com calma e prazer o seu pacote de pipocas; e olhava a tudo com visível interesse. Tanto, que cheguei a suspeitar ser essa a primeira que Elza entrava em um cinema. Tempos depois eu saberia que não estava de todo errado.
O filme não era uma das grandiosas produções de Hollywood, e nem sei mesmo se seria uma produção de Hollywood ou do cinema europeu. Era um filme em preto e branco, e somente lembro-me do seu título, Fräulein, porque o associei à primeira e quase a única vez que estive com Elza em um cinema. O tempo do filme se passava em um momento do quase final da Segunda Guerra Mundial, e contava a história de uma garota alemã e um soldado americano, os quais protagonizaram uma intensa e verdadeira história de amor, tornada impossível de se concretizar pelo drama da guerra e pela intolerância de ambos os lados beligerantes, principalmente dos alemães com a intransigente Gestapo, a polícia secreta alemã do período da guerra, ainda mais porque a garota fazia parte das pessoas que se opunham aos motivos e rumos daquele conflito mundial. Eu diria ser uma história comovente, principalmente para apaixonados como estávamos, eu e Elza.
Certamente eu me comovi com alguns momentos do filme; Elza, porém, foi às lagrimas na maioria do filme, uma vez que era visível o crescente envolvimento amoroso do casal protagonista, e as dificuldades se somavam para tornar impossível sua vida a dois e em um mundo de Paz. Em alguns momentos de elevada tensão, Elza se agasalhava ao meu abraço, e recolhia seu rosto contra meu ombro, e se recusava a olhar. Houve um momento em cheguei a sugerir se ela não preferia sair, mas ela disse-me que precisava resistir a isso, e muito mais tarde eu perceberia que Elza, naquela sessão de cinema, também lutou contra as suas tensões interiores.
Terminado o filme, saímos para a noite fresca que convidava para passeios e namoro. Elza, porém, ainda estava envolta em visível tensão à qual procurava disfarçar. E sem esperar estarmos mais a sós, ela envolveu-me em um abraço, nos beijamos, e ela entrou no primeiro taxi que conseguiu parar, e se foi.
Não seria preciso dizer que aquela noite também foi de conjecturas sobre os mistérios que rondavam a vida de Elza, e nas reiteradas vezes em que nossos encontros se interrompiam da mesma forma: Elza tomando um taxi para o desconhecido.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Os labirintos de Elza

Parte XIII

A manhã seguinte foi luminosa, agradável em todos os sentidos. Apesar de lembrar-me do comportamento estranho de Elza diante da visão do quadro sombrio na sala de exposição, e do que ela me dissera ao final do jantar, meu pensamento ainda estava em cada um dos outros momentos passados juntos. Tivesse eu acesso à vida privada de Elza, eu teria deixado tudo para estar com ela por toda aquela manhã. No entanto, como não o tinha, passei boa parte da manhã em companhia dos amigos, algo esperançoso de que Elza telefonaria e passaríamos a tarde do domingo juntos. Não houve um telefonema de Elza naquele domingo, e também nos dias seguintes, o que me conduzia a ter certeza de que assim seria a minha vida ao lado de Elza, pelo menos até que algo novo viesse a alterar essa inquietante rotina.

Porque assim eu ponderava, e porque os amigos e a família alimentavam discussões a respeito do meu relacionamento com Elza, incógnita para todos, crescia em mim o desejo ardente de, finalmente, ter a namorada dos sonhos, ao lado da qual eu pudesse viver todos os momentos possíveis de acontecer em um namoro sério. E eu, temeroso por afastar Elza, nada dizia a ela a respeito desse meu desejo; de eu poder buscá-la e levá-la à sua casa; conhecer-lhe a família; tê-la em minha casa entre os meus familiares e no convívio com os amigos. Enfim, ter com Elza um namoro para valer.

Talvez tenham decorridos dois meses desde esse nosso encontro o qual eu considerava de fato um encontro. Nesse tempo houve, sim, telefonemas e cartas de Elza. Tivemos encontros felizes, e raros momentos obscuros aos quais eu atribuía fatos e circunstâncias da vida de Elza que deveriam ficar desconhecidos por mim, convencido que eu estava de que tudo viria a seu tempo, e o que tivesse que ser e acontecer como consequência do nosso relacionamento, aconteceria. Talvez porque eu confiasse demais na possibilidade de um futuro com Elza, ao final desse tempo aconteceu algo que, para mim pelo menos, foi um divisor que selou definitivamente o rumo das nossas vidas. Aconteceu o primeiro beijo: intenso, denso, recíproco e perdidamente apaixonado beijo; uma entrega terminal de almas; ao final da qual nos olhamos extasiados e confiantes de que estávamos protagonizando um encontro de verdadeiros amantes. Todavia, como em tudo com Elza ocorriam os senões, depois de nos olharmos apaixonadamente, e novamente nos beijarmos, percebi como que uma sombra em seu olhar, a qual ela logo procurou dissipar. Para mim, ficava claro que Elza dissimulava algo.

No entanto, havíamos tido um encontro como tantos outros, ao final do qual Elza tomaria um taxi e mergulharia no seu mundo o qual eu não ousava desvendar. Se iríamos, e quando iríamos, nos encontrar novamente, ficaria à mercê dos mandos da vida e da iniciativa de Elza. Todavia, o final desse encontro seria diferente. Despedimo-nos; o taxi no qual Elza embarcara já estava de partida, quando ela o fez parar. Sem sair do taxi, olhou-me como somente ela sabia me olhar, e disse que adoraria ser convidada para o cinema na quarta-feira, que seria dali a três dias; e sorriu, dizendo o lugar e a hora em que nos encontraríamos, e partiu.

sábado, 28 de novembro de 2009

Os labirintos de Elza

Parte XII


É impressionante o acudimento de fatos cuja única função parece ser o embotamento da mente e da razão, e como isso talvez seja percebido apenas com o distanciamento no tempo, e na contabilidade das perdas. Quantos sinais terão vindo de Elza, e eu, perdido no emaranhado dos abraços da paixão, não os percebi. A minha profunda paixão por Elza foi, e ainda é, um fato marcante na minha vida, e foram as emoções dessa paixão quem me impediu, talvez, de melhor perceber os muitos sinais que Elza involuntariamente me enviava.
Assim que Elza se afastou levada pelo taxi ao seu mundo por mim desconhecido, praticamente refiz os mesmos caminhos, e estive nos mesmos lugares nos quais estivemos juntos desde o nosso encontro naquela tarde.
Foi algo de muito intuitivo, o que, passado o rolo compressor do tempo, este quase me fez mergulhar em profundo sentimento de culpa. Assim que Elza se foi, e eu maquinalmente comecei a caminhar e a pensar equivocadamente em alguns detalhes desse nosso encontro, percebi-me próximo ao local da exposição de telas de pintura que, apesar da hora, ainda estava aberto à visitação. Sem entender porque, entrei nas salas de exposição, e fui direto ao quadro diante do qual Elza teve aquele calafrio.
Fiquei por algum tempo observando o quadro. Lembro-me que era quase quadrado, e suas dimensões certamente tinham mais de um metro de lado. De fato, era um trabalho um tanto sombrio. Eu diria ser uma pintura expressionista, talvez retratando algum estado de alma, não necessariamente do próprio artista. Se me lembro bem, seu título tinha algo a ver com “Factuais”; suas cores eram sinistras, escuras, com possíveis esboços de rostos um tanto distorcidos e medonhos traspassados por um emaranhado de traços sinuosos; algo inquietante, penso hoje. Naquela época, e para mim, era apenas isso, um trabalho de pintura inquietante, e só. Talvez não o tivesse sido para Elza. Obtuso que andava por minha paixão por Elza, sequer me permiti refletir seriamente no porque a visão do quadro teria provocado nela uma tal reação, da qual, com visível esforço, se recuperou logo. Naquela época, também equivocadamente, atribui isso a um excesso de sensibilidade, o que me agradou.
Saí da exposição, e ainda caminhei por algum tempo aproveitando o frescor da noite e das lembranças dos detalhes daquele nosso encontro; das nossas mãos entrelaçadas; da maciez e do calor do seu corpo pela primeira vez colado ao meu; do seu cheiro primoroso; dos seus sorrisos; das coisas inconsequentes que dissemos, e julguei inconsequente o que Elza disse no restaurante quanto a eu não dever apostar fichas nela por tratar-se talvez de uma doida; da sua alegria contagiante. Eu era um apaixonado.
E foi com esse pensamento que rumei para casa e, revolvendo-me na cama, adormeci.

sábado, 21 de novembro de 2009

Os labirintos de Elza

Parte XI


Eu não hesitaria atender ao seu convite e, com ela, eu mergulharia na eternidade. Estávamos muito próximos, o calor vindo do seu corpo e o seu perfume inebriavam-me. Nesse momento, houve o leve toque das nossas mãos e, no instante seguinte, estavam entrelaçadas com suavidade. Um momento de raro enlevo. Então, sussurrando, falei-lhe do meu sentimento, de que, ao seu lado, em qualquer mundo, eu abraçaria com ela a eternidade. Elza, pela primeira vez cedeu, aconchegou-se, melhor entrelaçou sua mão à minha, envolveu meu braço com a outra mão, e recostou sua cabeça ao meu ombro. O toque com o seu corpo, também pela primeira vez, envolveu-me numa onda de calor e paixão. Elza transpirava os mesmos sentimentos. Beijei-lhe os cabelos à altura da testa, sorvi deles todo o frescor, e Elza cedeu a um ligeiro tremor de gozo que, pareceu-me, há muito era desejado. E assim, muito próximos, olhamos demoradamente as outras telas restantes dessa série.
Um cartaz convidava aos visitantes a verem outros trabalhos do mesmo artista em uma sala contígua. Para lá rumamos, ainda de mãos dadas e, felizes.
Nessa outra sala, havia telas de várias tendências, talvez numa demonstração de que o artista fosse bastante eclético quanto aos variados gêneros de pintura. Havia, desde retratos perfeitos, a marinas e casarios, como que demonstrando as várias fases de amadurecimento que o artista experimentou, todos, excelentes trabalhos, que nos dava prazer olhar, e Elza mostrava-se radiante e bela, entusiasmada sem ser pueril. Em um instante seguinte estávamos, porém, diante de um quadro sombrio que provocou estranha atitude em Elza. Assim que fixou os olhos no quadro, algo a fez soltar minha mão. Em seguida ela cruzou os braços como que a proteger-se de um calafrio. Percebi nela um ligeiro tremor e, por breve momento, sua expressão era de medo; logo em seguida, com visível esforço, afastou-se em direção à rua. Eu a segui. Já na rua, ao ar fresco da noite que caía, Elza se refez. Perguntada sobre o que estava ocorrendo, ela disse não ser nada, apesar do ainda visível esforço que fazia para mostrar que tudo estava bem. E quase que seguindo a um impulso, Elza retomou minha mão e pareceu nos afastar daquele lugar. Por muito tempo eu não compreendi o que aconteceu, e Elza jamais falaria para mim desse momento.
Caminhamos um pouco pela rua observando desinteressados algumas vitrines. Daí a pouco estávamos, sem o pretendermos, diante de um restaurante. Eu disse para Elza que eu morria de fome, e que não esperava dela uma desfeita ao recusar o meu convite para um jantar. Aparentemente já refeita do acontecido, sorriu, e nomeou-me como um lobo faminto, do que jamais, também, pude perceber o sentido no qual falava.
Certamente devido à hora, pois a noite apenas começava, o restaurante estava quase vazio, e não foi difícil conseguirmos mesa em meio às muitas reservadas. O lugar ainda era bom, o que nos permitia relativa privacidade. Fizemos os pedidos. Quando sugeri um vinho, Elza declinou dizendo algo relativo ao álcool, mas deixou-me livre para escolher. Escolhi o mesmo que ela: água. A comida era muito boa, e os momentos foram melhores ainda: comíamos, bebíamos, conversávamos sobre muitas coisas, ríamos de tudo. Depois, já saciados, ocorreu algo que me pareceu enigmático, o qual, como tantas outras coisas, eu viria a compreender muito tempo depois.
Em um daqueles momentos nos quais uma conversa divertida parece querer ceder lugar para questões mais sérias, e depois de brevíssimo silêncio durante o qual percebi Elza olhar para lugar algum como que a refletir sobre algo, ela estendeu sua mão sobre a mesa e alcançou a minha mão que repousava sobre a mesa. O toque sobre a minha mão foi morno e úmido, o que me aparentou que Elza vivenciava algum tipo de forte emoção. Depois, fitando nossas mãos com um olhar como que perdido e introspectivo, ela disse algo que também naquele momento não entendi. Ela dizia para que eu não apostasse muitas fichas nela, pois que ela bem poderia ser uma doida. Foram essas suas palavras, enquanto pressionava e envolvia a minha mão com visível e crescente emoção. Eu posei minha outra mão sobre a sua, e disse-lhe algo para tranqüilizá-la e, em um instante seguinte eu a vi fazer o mesmo gesto de outras vezes: o de olhar para lugar ou coisa alguma como que a ordenar seu pensamentos. Em seguida, com o mesmo sorriso que me desmontava sempre, ela dizia que precisava ir para casa.
Em cada uma das mesas havia um esguio vasinho que trazia uma rosa vermelha. Recolhi a que estava sobre a mesa que ocupávamos e a ofereci a Elza. Depois, pedindo ao garçom para incluir a rosa na conta. Disse-me ele que a flor seria cortesia da casa; paguei, e saímos à rua.
Instantes depois eu via Elza embarcar em um taxi. Ainda perambulei por longo tempo pelas ruas refletindo sobre todos os momentos já vividos com Elza, perdido que eu estava entre os enigmas que era a sua vida.

sábado, 26 de setembro de 2009

Os labirintos de Elza

Parte X

A semana seguinte passou como se aqueles momentos tão agradáveis não tivessem acontecido. Elza não telefonou, e sequer respondeu à minha carta escrita já no sábado à tarde na qual eu dizia coisas ainda não ditas.
Nesse tempo, o que eu ouvia dos meus amigos eram estímulos para esquecer Elza. Mais do Adauto, ao qual eu havia confessado que nada mais havia acontecido além que rápidos beijos nas faces; e ele lembrava-me das noitadas com garotas, e dizia-me sentir falta disso, da minha companhia nessas noitadas intermináveis. Já a Norminha, talvez por ser mulher, parecia-me olhar de um jeito algo penalizado, talvez desconfiada de que eu não soubesse compreender o espírito feminino. Perguntava-me coisas, eu respondia. Ao final, acrescentava ao seu olhar algo ainda mais enigmático, e dizia para eu continuar, que tudo iria acontecer ao seu tempo. Dividido entre essas duas opiniões contraditórias, eu oscilava entre o impulso para manter a lealdade que eu sentia dever a Elza, e os momentos agradáveis ao lado de garotas liberadas, alegres, sempre prontas para tudo ou nada.
Quase no final da segunda semana sem ter notícias de Elza, ela telefonou-me. Então, já convencido de que assim deveria ser, agi como se houvéramos nos visto na véspera. Percebi repetida a impressão de que Elza teria acabado de sair de uma ressaca, apesar de ser no princípio da noite, algum tempo depois de eu ter chegado do trabalho. Conversamos; eu disse que precisaria vê-la. Combinamos sair no sábado seguinte, que seria daí a dois dias; finalmente, um encontro em um final de tarde.
Encontramo-nos em umas das praças da cidade, para mim, a mais agradável, espaçosa, que trazia em um dos seus recantos uma porção de água sempre corrente e mantida limpa, povoada de carpas coloridas. Em determinado lugar, o suave marulhar de água em ligeira cascata. Um belo lugar para encontros e momentos agradáveis.
Elza parecia-me bem, ou, melhor, em dado momento das nossas idas e vindas no passeio pela praça, pareceu-me que ela se esforçava para parecer bem. Ria; falava-me feliz das coisas que via; como uma criança faria, escolhia entre as carpas coloridas aquela que mais lhe parecia solta, alegre, de bem com a vida, como dizia. Sentamo-nos na grama, em um dos muitos recantos traquilos que havia por ali, e repetia-se a mesma sensação: estando eu ao lado de Elza, tudo o mais ao redor parecia não existir, e isso, para mim, sempre ficava claro que era recíproco em Elza.
Em dado momento, de tão absortos estávamos, percebemos que principiava escurecer. Lembrei-me nesse momento de ter visto algo relativo a uma exposição de pinturas que estava acontecendo em uma sala contígua ao teatro da cidade, não muito distante de onde estávamos, e rumamos para lá.
Felizmente, a exposição estava aberta àquela hora. As telas, não muito grandes, era um trabalho interessante: uma série de pintura de recantos em meio a matas, em cores vibrantes, colhidas como que instantâneos fotográficos. O que havia de incomum, mas, comum em todas as pinturas dessa série, eram os fachos de luz. O artista, demonstrando enorme sensibilidade, registrou traços de réstias de luz vindas do Sol, trespassando espaços entre a folhagem e incidindo no chão. Era quase possível, como que em um relógio solar, dizer a hora em que o cenário foi pintado. Em uma delas, em que os raios solares incidiam quase que em ângulo reto, eles inundavam de luz uma pequena clareira no meio da porção da mata retratada. Elza admirava cada uma das telas. Nessa, porém, disse, radiante, ter o desejo de mergulhar no cenário e dele fazer parte. Brincando, dizia que, dali, acenaria para mim, e me convidaria para sentar ao seu lado. E olhou-me com uma intensidade que eu ainda não havia percebido em seu olhar. E eu soube: Elza me amava.

domingo, 13 de setembro de 2009

Os labirintos de Elza

Parte IX


Após voltar, passaram-se mais alguns dias até eu receber um breve telefonema de Elza e, no dia seguinte, a sua segunda carta. Nesse hiato de tempo, cheguei a pensar se valeria a pena continuar a alimentar alguma esperança de futuro junto a Elza. Mas, algo de inexplicável e profundo em mim, me impulsionava ir adiante. Ainda mais, que, Elza, embora dissesse nessa carta declinar, desculpando-se, de aceitar meu convite para um jantar, e deixar claro que isso seria maravilhoso acontecer, marcou nosso próximo encontro.
Sem nada mais acrescentar, ela disse que, no sábado seguinte, estaria na mesma hora e no mesmo lugar no qual, segundo eu lhe dissera, eu a havia visto pela primeira vez: no lugar, portanto, na rua, onde eu a vira brevemente refletida no espelho de uma vitrine.
Como daquela vez, quando estava ávido por rever meus amigos após uma longa ausência, dirigi-me ao mesmo lugar com quase meia hora de antecedência, desejoso de não fazê-la me esperar. Não foi preciso. É como se tivéssemos combinado isso: ao ir me aproximando do exato lugar onde deveríamos nos encontrar, vi Elza que vinha ao meu encontro. Estava radiante, vestida com encantadora leveza, e sorria lindamente. Parecia transbordar felicidade ao ver-me. Foi natural e denso o impulso que tive de ir rápido ao seu encontro, envolvê-la com meus braços, e beijá-la apaixonadamente. Mas, foi Elza quem conduziu esse encontro. Com naturalidade, estendeu-me a mão para um formal cumprimento. Talvez por brevíssimo instante eu tenha deixado transparecer decepção. Então, acolhi sua mão, macia, morna, ligeiramente úmida, e a retive entre as minhas mãos, meus olhos nos seus olhos que brilhavam, talvez de contido arrebatamento. Levemente eu a atraí para mim, para beijá-la. Elza ofereceu-me suas faces, às quais beijei, e aspirei seu inconfundível perfume.
Caminhamos pela rua que naturalmente era fechada ao trânsito de veículos. Tudo o mais parecia ter deixado de existir: as lojas, as pessoas que iam e vinham, os sons vindos de todos os lugares. Conversávamos sobre coisas, coisas que pareciam não pertencer a um passado, nem depender de um futuro, e isso era delicioso. Por fim, nos sentamos a um dos muitos bancos dispostos ao longo da rua, e protegido do sol da manhã. Ficamos ali, por longo tempo.
Tomamos um sorvete que eu fora buscar em um estabelecimento próximo dali; nos lambuzamos um pouco, e ríamos, felizes.
Foi Elza quem lembrou que naquele sábado deveria estar acontecendo a feira quinzenal de plantas e flores onde nos falamos pela primeira vez. Rumamos para lá. Como
Elza, as flores estavam radiantes. Em uma banca onde percebi que as rosas pareciam mais belas, pedi reservadamente à senhora que me atendeu para preparar um buquê com muitas rosas vermelhas, e disse-lhe confiar que o buquê fosse feito com o melhor dos esmeros, apontei Elza que se distraia olhando uns vasos um pouco adiante. A mulher disse ter entendido, e o faria muito especial.
Quando Elza recebeu o buquê de rosas pouco depois, realmente maravilhosos, pareceu desfazer-se em incontida felicidade. Estávamos bem ao lado de um recipiente que continha apenas rosas brancas. Em um impulso, recolhi aquela que achei ser a mais perfeita entre todas, beijei-a, e entreguei para Elza que a acolheu, olhou-a intensamente, beijou-a, acariciou-a, e a colocou destacada entre as demais rosas vermelhas do buquê, e parecia flutuar em felicidade que me contagiava. Paguei à senhora que nos atendeu, que falando baixinho, desejou-me felicidade. Pouco depois passamos pela banca de onde, no primeiro encontro, eu recolhera o vasinho com violetas e o dera para Elza. Ela foi quem se lembrou disso, e disse-me que o vasinho transbordava flores brancas, e que de três folhas mais velhas havia reproduzido a planta, e que a primeira delas logo estaria florindo.
Aproximava-se o meio dia, e pensei ser natural almoçarmos juntos. Convidei-a. Elza repetiu aquele seu gesto de olhar para lugar algum, refletir, e dizer-me que precisava ir para casa. Não retruquei, não insisti, e a acompanhei até um ponto de taxi que ficava próximo de onde estávamos. Abri-lhe a porta. Antes de entrar no taxi, Elza aproximou a rosa branca dos seus lábios, beijou-a, e segredou-me que cuidaria para que essa rosa durasse mais que todas as outras. Beijamo-nos nas faces. Elza entrou no taxi. Enquanto eu fechava a porta, ela olhava-me feliz, e agradecia pela bela manhã que tivera.
Depois, novamente, fiquei olhando o taxi se afastar, e dobrar uma esquina. Fiquei ainda parado alguns instantes; e veio-me o pensamento de que Elza rumava para um seu mundo por mim ainda desconhecido, e mergulhado em densas névoas de mistério.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Os labirintos de Elza

Parte VIII


Uma única folha. Assim foi a primeira carta de Elza com a qual construía, finalmente, uma ponte que tornava possível haver duas vias entre nós. Escrita com caligrafia esmerada, elegante, Elza ateve-se tão somente em construir breves argumentos para tentar justificar porque assim procedia. De pronto notei que, quando se tornava premente seu pensamento ir um pouco além, abruptamente ela interrompia suas frases então inacabadas interpondo reticências que mais mistérios traziam para a sua vida. Eu me indagava: quem seria essa mulher à qual eu estava disposto a amar por toda a minha vida?
Lendo essa primeira carta de Elza, e refletindo sobre a sua estória até então vivenciada de cujos fragmentos eu sabia, cresceu em mim a sensação de que a vida de Elza era como que mergulhada em espessas e impenetráveis brumas. Sua vida passada, eu intuía, dificilmente eu desvendaria, pois que parecia mergulhada em inexploráveis mistérios. Algo em relação ao futuro em comum parecia-me impossível de acontecer, muito embora, mais forte que tudo em mim, o que eu de fato desejava era construir a mais intensa das histórias de amor com a qual pudesse sonhar e almejar viver ao lado de Elza.
Naquela noite, depois de ler e reler a carta breve de Elza, procurando identificar e reter na memória os mais tênues dos signos que ali pudessem ser percebidos, escrevi-lhe uma carta densa na qual abria meu coração, como jamais fizera com mulher alguma. Nela eu pedia para nos encontrarmos, e a convidava para um jantar, talvez. Nessa mesma carta, por necessidade inadiável do trabalho, disse-lhe que no dia seguinte eu estaria viajando e que estaria ausente da cidade por dois, possivelmente por três dias.
Na minha ida para o aeroporto, depositei a carta em uma caixa coletora do correio, e todo o meu ser, todo o meu pensamento, passou a desejar com intenso ardor de que na volta eu encontraria uma carta como resposta de Elza, ou receberia um seu telefonema, dizendo que, finalmente, estaríamos juntos gozando as delícias de um primeiro encontro de fato, e um primeiro de muitos outros jantares a dois.
Nos dias que se seguiram, sonhei com isso.

domingo, 16 de agosto de 2009

Os labirintos de Elza

Parte VII

Precisei esperar vários dias por outro telefonema de Elza. Não precisaria dizer que vivi continuados momentos de inquietações, e quanto mais o tempo passava e não era Elza quem estava ligando quando soava o alarme do telefone, as inquietações iam se transformando em angústia. E pior: eu simplesmente não sabia o que fazer, ou, pior ainda, nada podia fazer.
Finalmente um dia, logo após eu ter chegado ao trabalho, ao atender a um dos telefonemas, era Elza quem estava no outro lado. Ela foi breve, disse estar feliz por finalmente estar ligando para mim, mas não queria causar problemas devido ao fato de eu estar no meu local de trabalho. Eu disse-lhe que, pela minha posição, isso não teria importância, que poderíamos nos falar por mais tempo, contanto que não fosse por três horas seguidas. Ela riu, e insistiu em desligar, dizendo que me telefonaria a uma determinada hora quando eu já estivesse em casa. Ainda perguntei-lhe o porquê de ter demorado tanto para telefonar-me, ela ficou por algum momento em silêncio, e depois disse, com algum embargo na voz, que foi involuntário, que assim foi preciso ser, e que ela também se angustiara por não ter podido ligar. Após ela desligar, mantive na memória a impressão de que havia algo de diferente na sua voz, cheguei mesmo a associá-la a uma voz de ressaca, o que de certa forma pareceu-me absurdo, mesmo pelo pouco que eu sabia de Elza.
O dia foi longo demais, muito embora tenha sido um daqueles dias de muita atividade, exigindo ações constantes, e até sendo obrigado a aproveitar a hora do almoço para encaminhar alguns assuntos que parecem fluírem melhor nesses momentos de relativa calmaria, quando se cria pretextos para se falar de negócios. No final, esse foi um dos raros dias nos quais fui fiel ao relógio quando terminou o expediente. Ou, melhor, alegando ter algo a fazer, e premido pelo tempo, avisei ao meu pessoal imediato e saí uns momentos antes. Pareceu-me que a Norminha foi a única que entendeu da importância do algo mais que eu tinha que fazer, afinal ela havia presenciado parte da conversa com Elza no início do expediente. Desejou-me boa sorte, e atirou-me um soprado beijo. Retribuí, e saí apressado.
Fui direto para casa. Contrariando o habitual, quando procuro logo por um banho, dei o costumeiro alô ao pessoal da casa, servi-me de uma bebida procurando relaxar, e fiquei atento ao telefone, fingindo ler algo. Pouco tempo depois soou o telefone: era Elza, fiel ao que prometera.
De alguma forma eu já sabia que da minha parte não devia haver cobranças ou pedido de explicações pela forma como nos relacionávamos, pela dependência de que apenas Elza era quem detinha a via que nos ligava. Falamos por um bom tempo, de trivialidades que nos divertiam e tornavam o papo agradável. A voz de Elza já estava bem melhor, pouco lembrava aquela voz de ressaca da manhã. Porque ela perguntava, eu dizia de algumas coisas que havia feito nesse hiato de tempo. Elza, porém, nenhuma referência fez sobre o que fizera nesses dias todos, e pareceu-me feliz por eu não ter insistido em saber, muito embora isso gritasse dentro de mim. No íntimo, repito, uma irresistível intuição me dizia que assim devia ser.
Antes de desligarmos, Elza disse-me que havia pensado em algo que, de alguma forma, nos daria chance de nos comunicarmos com talvez outra liberdade, e que em parte resolveria o problema de eu não ter o seu número de telefone.
Três dias depois, entre as minhas correspondências havia um elegante envelope subscrito com uma magnífica caligrafia. O meu endereço, certamente foi retirado do cartão que no primeiro dia de encontro na feira de flores e plantas eu entreguei para Elza, o qual ela havia recolhido, olhado por alguns instantes e então dito que telefonaria.
Como remetente, havia apenas: Elza Flávia, e o número de uma caixa postal.

domingo, 26 de julho de 2009

Os labirintos de Elza

Parte VI


Eu gostava de ter o controle das circunstâncias e das coisas, e o fazia de maneira saudável, creio, tanto que essa característica foi um dos fatores que me levaram a obter a promoção pela qual esperava há muito tempo, pois eu conseguia manter uma equipe coesa, cooperativa, quase sem atrito, muito produtiva, e assim construía relacionamentos, tanto na vida pessoal quanto no trabalho. Porém, no primeiro encontro com Elza ao acaso na feira de plantas e flores, e no seu primeiro telefonema, eu percebi que isso de nada adiantaria em se tratando de Elza. Essa percepção foi intuitiva e logo percebida quando procurei dar atenção a cada detalhe desse novo relacionamento; e se eu quisesse construir uma história de amor com Elza, assim teria de ser feito. Não que Elza demonstrasse vontade de ter o controle das situações, mas por eu ter percebido que, por alguma razão, era assim que ela gostaria que as coisas acontecessem, e que eu deixando que assim fosse minhas chances com ela aumentariam. Tempos depois eu saberia o quanto acertada foi essa minha atitude, e o quanto isso foi importante para a vida de Elza.
A primeira hora falando com Elza ao telefone passou como se fora apenas alguns breves minutos. Notei isso quando alguém da casa deu-me um caldo quente e apontou-me o relógio, pois eu perdera o jantar: quase uma hora e meia havia se passado, e a conversa continuava animada, e quase inconsequente se não se tratasse de eu estar falando com Elza.
Percebi que, para Elza, o seu tempo verbal era quase todo no presente. Se ela falava alguma coisa relativa ao passado, esse passado não ia além da última semana. Mais tarde eu perceberia que, relativamente ao futuro, o depois de amanhã praticamente não existia para Elza. Do nosso primeiro encontro na feira, e da primeira vez em que a vi na rua e a segui até ela entrar na igreja, ela pedia para que eu falasse, e eu repetia evitando que isso soasse ao pueril. Quando falei do primeiro encontro, da braçada de rosas coloridas que ela trazia, disse-me que elas já não existiam, que apesar dos cuidados, haviam murchado e já estavam mortas, e que apenas uma ainda estava com ela. Quando lhe perguntei como e porque, ela pareceu refletir um pouco, disse que falaria dessa rosa, e depois perguntou se eu não lembrava que a um dado instante ela teve de fazer um movimento para permitir que uma pessoa passasse rente a nós e que uma das rosas havia tocado em meu braço; que ela discretamente havia destacado essa rosa das outras; que chegando a sua casa a havia colocado em um vaso solitário e, antes que a flor murchasse, procurou fazer dela um marcador de páginas, e essa rosa agora marcava a página do livro que estava lendo. Todas essas coisas, simples, nos divertiam e levavam a conversa para mais adiante sem percebermos o tempo correr e, para mim, o mais importante: uma rosa seca entre as páginas de um livro era o meu elo com as lembranças de Elza que pensava em mim.
Por algum breve momento, quando eu lhe perguntei se eu não teria mesmo o número do seu telefone, um endereço onde pudesse buscá-la e levá-la nos encontros pelos quais eu sonhava, eu pude imaginar Elza olhando calada para além, para lugar algum, e refletir, para depois dizer que ela telefonaria outras vezes, e jamais mencionaria onde eu poderia encontrá-la. Logo eu intuiria que assim também deveria ser: Elza controlaria o nosso tempo.
O primeiro telefonema de Elza demorou mais de três horas, e quando desligamos fiquei ainda algum tempo com o telefone mudo nas mãos tentando compreender como as coisas fluiriam, e a imaginava do outro lado ainda pensando em mim.
Depois, tanto nos questionamentos feitos pelos de casa querendo saber quem era Elza, quanto nos questionamentos dos amigos, quando lhes contei sobre o telefonema de Elza, e dizia-lhes que ainda não obtivera nada mais de quem era Elza, eram unânimes em dizer que, certamente, Elza teria mais alguém, que era mulher já comprometida.
Para mim, e por enquanto, bastaria apenas que Elza me telefonasse uma vez mais.

sábado, 18 de julho de 2009

Os labirintos de Elza

Parte V

Nesse dia, houve angustiantes horas de espera por um novo telefonema de Elza, e eu não o queria perder por nada deste mundo. Porém, as horas todas, transcorridas como se fossem a própria eternidade, transformaram-se em interminável final de tarde, e o telefone insistia em anunciar toques que pareciam vir de todo o mundo, menos de quem tanto eu desejava.
No cair da noite, resisti ao assédio dos amigos para o encontro habitual após o trabalho. Em razão deste, o dia não fora nada tedioso, exatamente como eu gostava que fossem os meus dias. Porém, por uma única outra razão, eu trazia nas carnes e na alma o desejo por um longo banho e o recolhimento: e como lamentei, outra vez, não ter insistido para ter um número de telefone através do qual pudesse falar com essa mulher que dominava inteira o meu pensamento. Chegando em casa, perguntei de imediato se alguém com o nome de Elza teria ligado para mim. Nada.
O banho teria feito exatamente o que dele eu havia esperado. No entanto, longo que foi, muito acima do habitual, não foi suficiente para lavar do pensamento tudo o mais que eu retivera na memória relacionado a Elza. Antes, a água tépida, como eu gostava às vezes que fosse, parecia cozinhar as minhas entranhas e, a cada lembrança de um olhar, de um breve sorriso, de cada uma das palavras ditas com a voz envolvente de Elza, faziam crescer em cada célula do meu corpo a quase irresistível ardência que vinha desse amor paixão que eu sentia.
Esse banho precisou chegar ao seu fim.
Depois de vestir-me, e falar com os de casa; e de não poder dizer exatamente quem era Elza de quem esperava um telefonema, servi-me de um aperitivo, e comecei a folhear de forma inconsequente umas revistas, o que me fez consumir toda a bebida e ficar pensativo, sustentando o copo vazio na mão. Nesse tempo o telefone havia tocado duas vezes: uma de um amigo que me convidava a ir a um encontro no qual teria chance de conhecer novas pessoas, convite esse que, contrariamente ao habitual, recusei; e outra para alguém da casa.
Chamado para o jantar já posto, eu estava prestes a sentar-me à mesa, quando o telefone tocou. Eu não saberia dizer nem como, nem porque, mas, tive a certeza de que finalmente eu falaria novamente com Elza. A certeza veio quando alguém atendeu ao telefone, e anunciou: é Elza!
O telefonema de Elza foi o meu jantar nesse dia.

sábado, 11 de julho de 2009

Os labirintos de Elza

Parte IV

Ainda fiquei olhando por algum tempo o taxi que se afastava levando Elza para longe de mim, até que ele dobrasse em uma esquina. Eu estava rarefeito, flutuava, e cada partícula minha guardava a certeza de que eu amaria essa mulher por toda a minha vida. Tudo em minha volta pareceu transportar-se para outra dimensão: as flores no final da feira, as plantas, as pessoas, as falas, tudo o mais, pertenciam agora a um mundo que somente existe no coração que prova a prova da paixão e do amor.
Vencido o momento de novo arrebatamento por ter estado com Elza, procurei logo por um telefone com o qual falar com o Adauto, o perfeito amigo para as boas horas, e também para as não tanto. Eu queria contar-lhe todas as novidades. Sua família era dona de uma empresa comercial, e disse-me ele que, mesmo sendo um sábado, estaria ocupado com algo da empresa que lhe tomaria toda a tarde. Porém, menos que meia hora depois estávamos bebericando em um barzinho que costumávamos freqüentar. O Adauto quis saber de tudo.
Uma das primeiras coisas que perguntou foi o nome dessa garota que tanto frenesi causava em mim. Somente então percebi que ainda não sabia seu nome. Foi Adauto quem disse que eu havia passado por bom tempo procurando por uma mulher sem rosto, e agora estava apaixonado pela mesma mulher agora sem nome; que meu caso era de uma perdição no amor. Depois, enquanto almoçávamos, foi o Adauto quem fez uma primeira conjectura plausível, devido ao fato de Elza não ter-me dado seu nome e um número de telefone: seria ela uma mulher livre? Isso me desconcertou, penso, pois logo o Adauto desconsiderou isso e deu palavras de esperança e certeza de que em qualquer circunstância ela telefonaria.
Tenho certeza. Se eu tivesse recebido o número do telefone de Elza, nesse mesmo sábado eu teria telefonado. Porém, passou o sábado e o domingo, e o que tive foram sobressaltos e decepções a cada toque do telefone e perceber que do outro lado não era Elza quem ligava.
Passaram-se mais alguns dias, e nenhum telefonema. Até que, certo dia, precisei fazer uma viagem de um dia. Ao retornar no dia seguinte, logo ao chegar, junto com o seu sonoro bom dia, a Norminha – parceira no trabalho que havia se transformado em dileta amiga – disse-me que Elza havia ligado. Quando perguntei quem era Elza, de onde era, e se havia deixado um número de telefone, Norminha fez uma expressão e um trejeito que queria dizer que se eu não soubesse, saberia ela? e que a voz do outro lado disse que voltaria a ligar. Então eu tive a certeza: Elza era o nome da mulher que eu amava.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Os labirintos de Elza

Parte III

Finalmente eu tinha a mulher com a qual havia sonhado, inteira diante de mim. Era bela, e trazia consigo um maço de rosas de variadas cores, e olhava todas as flores expostas nas bancas da feira com expressivo prazer. Fiquei por alguns instantes perdido em pensamentos, e feliz por tê-la reencontrado.
Eu não poderia perdê-la. Aproximei-me quando ela estava algo pensativa e diante de uma profusão de lírios brancos. Disse-lhe que eram lindos, e ela, sem olhar-me, disse que eram tristes lembranças de morte, e continuou a olhar os lírios, ainda pensativa. Sua voz era envolvente, e no momento eu soube dizer apenas que achava os lírios alegres e assemelhados a barulhentos clarins brancos, e perguntei se ela não ouvia a música. Ela meneou a cabeça e sorriu, dizendo que talvez fosse melhor se fossem assim e, talvez pensando ser eu um vendedor, seguiu adiante parando em uma banca repleta de violetas intensamente coloridas. Eu a segui, aproximei-me, e procurei uma forma de chamar-lhe a atenção. Ela olhou-me. Percebi que fizera uma rápida avaliação de mim e, delicadamente, sorriu.
Fui direto. Disse-lhe rapidamente da vez que a tinha visto; que eu a havia seguido secretamente; do impulso enfim fracassado de entrar também na igreja; e que nos últimos tempos ela povoou os meus pensamentos; e do meu intenso desejo de reencontrá-la, o que acontecia enfim. Enquanto eu falava, pareceu-me que ela intensificava sua avaliação, pois olhava detalhes de mim, procurava algo em meus olhos, e sorria delicadamente. Quando terminei, ela desviou o olhar como se vislumbrasse algo distante, depois, baixou o olhar para as rosas que trazia consigo, e ficou por breve momento pensativa. Por fim, olhou para mim, um pouco triste, pensei, e sorriu levemente sem nada dizer.
Eu, sem temor algum de estar sendo inconveniente, disse-lhe que adoraria ter a oportunidade de um encontro em algum outro momento para conversarmos. Delicadamente ela disse que talvez fosse melhor não, e pareceu-me que dizia isso com algum desconforto, como se em seu íntimo tivesse desejo contrário. Pedi-lhe, então, um número de telefone pelo qual eu poderia entrar em contato, e então teríamos chance de nos falar já em outra circunstância.
Novamente, ela baixou os olhos para as rosas que trazia, e parecia-me que ponderava profundamente. Por fim, disse ser melhor que ela tivesse o meu número de telefone, que ela telefonaria. A uma expressão minha um tanto de angústia e desconfiança de estar fracassando, ela sorriu serenamente e disse que telefonaria. Dei-lhe meu cartão com o telefone do trabalho e da minha residência. Ela o acolheu, olhou-o por alguns instantes, e repetiu que telefonaria. Depois se desculpou, e disse que precisava ir.
Antes que ela se fosse, estendi o braço para a banca, peguei um vasinho com violetas roxas que me pareceram as mais radiantes, e entreguei para ela, acrescentando que era para não ser esquecido. Elza também ficou radiante, agradeceu e, pedindo para que eu não me importasse, apontou para outro vasinho com flores brancas dizendo que ficaria com aquele. Rimos. Elza olhava para o vasinho em sua mão, e pareceu-me estar feliz.
Em seguida, ela disse que telefonaria, despediu-se e se afastou em passadas suaves que nada lembravam as passadas resolutas da primeira vez que a vi. Pouco adiante parou um taxi. Antes de entrar no taxi, talvez na certeza de que eu a acompanharia com o olhar, ela olhou para mim, ergueu o vasinho como a agradecer mais uma vez, e sorriu.
Não sei dizer quantas vezes mais eu veria Elza entrar em um taxi, e desaparecer do meu olhar.

domingo, 21 de junho de 2009

Os labirintos de Elza

Parte II

Rever alguns dos meus amigos, e como desdobramento passar algumas horas muito agradáveis com eles, era quase tudo o que eu havia necessitado nos últimos tempos. Porém, algo nesse momento se interpunha e certamente me inquietava. Talvez tanto, que em um dado momento o Adauto, o amigo de todas as confidências, arrastou-me para um lado e quis saber o que me preocupava. Falei-lhe da garota sem rosto, das circunstâncias em que a tinha visto, e do temor de que poderia jamais voltar a vê-la. Isso o divertiu um pouco, disse estar aliviado e, para tranquilizar-me, talvez, disse algo relacionado à cumplicidade que o tempo e o destino mantinham com os amantes. Se tudo havia conspirado para eu vê-la uma vez, poderia confiar que algo seria arranjado para eu encontrá-la em outra circunstância. O Adauto era assim: prático, sem rodeios, amigo. E voltamos para o grupo.

Apostando que talvez fosse um hábito dessa mulher, nos dias seguintes e na mesma hora, percorri a mesma rua; até mesmo entrei na igreja e sentei-me no último banco observando as pessoas que entravam e saiam. Nada.

Terminado o curto período de férias, viajei e voltei à rotina do trabalho. Cheguei a acreditar que jamais voltaria a ver essa garota que preencheu o meu pensamento, e despertou tantos sentimentos. Lamentei não ter resistido momentaneamente ao assédio dos amigos, e ter entrado naquela igreja, quando a garota lá entrou.

Talvez meu amigo Adauto tivesse razão quanto à cumplicidade do tempo. Eu esperava por uma promoção que eu sabia poder demorar até um ano para acontecer. Porém, algumas coisas se precipitaram, e menos de dois meses depois de eu ter viajado, fui convocado para assumir imediatamente uma função gerencial. Isso implicava em eu permanecer na minha cidade, e as viagens a trabalho existiriam, mas seriam esporádicas e de curta duração. Voltei feliz para a proximidade da família e dos amigos, e o calor da esperança de rever aquela garota que permanecia no meu pensamento, cresceu.

O tempo ainda não tinha diminuído na memória a lembrança daquele corpo de mulher, e também foi conselheiro e cúmplice no sentido de que a ele fosse confiado o possível reencontro. Mesmo assim, e sem as inquietações daqueles outros finais de tarde nos quais apostei em um possível hábito de Elza para reencontrá-la, em alguns finais de tarde andei pelos mesmos lugares por onde andei quando a vi pela primeira e até agora única vez.

Foi na manhã de um sábado que o que eu tanto esperava aconteceu. Eu soube que agora havia na minha cidade uma feira de flores, plantas e arranjos ornamentais que se instalava em determinado lugar de uma das praças, a cada quinze dias, aos sábados pela manhã.

Interessado em conhecer essa feira, e talvez renovar algumas plantas da minha casa, fui. Já havia feito algumas aquisições, as quais seriam entregues no meu domicílio, e estava pronto para ir embora, pois queria estar em casa quando fossem fazer a entrega das plantas, quando algum impulso interior fez-me interessar em ir até às bancas que só vendiam flores.

Foi quando, a poucos metros diante de mim, vi Elza que contornava uma das bancas para ir ao outro lado e, sem o querer, claro, mostrar-me o seu rosto. Lindo.

sábado, 13 de junho de 2009

Os labirintos de Elza

Parte I

Odiei cada instante vivido com Elza. Não. Não que tivessem sido instantes ruins. Todos eles foram momentos bons, talvez os melhores da minha vida, e cada um deles foram promessas de anos possivelmente felizes. Elza foi a primeira mulher a dizer amar-me, e eu pude olhar nos seus olhos e dizer que a amava com toda a intensidade do meu ser. A primeira vez que a vi foi como silhueta de uma bela mulher refletida em um espelho de uma vitrine.

Por razões de trabalho, eu havia estado ausente da minha cidade por um longo período, e finalmente gozava um curto período de férias. Havia visitado alguns lugares que há muito desejava ver, e revia minha família e meus amigos.

Eu chegara no início da noite anterior, e combinara com alguns amigos de nos encontrarmos no final da tarde do dia seguinte. Eu estava ansioso por revê-los, e por isso me antecipara em muito para o encontro, e gastava o tempo fazendo algumas coisas que me davam prazer. Acabara de sair de uma livraria e estava satisfeito por ter encontrado um livro que há muito desejava ler. Isso eu faria mais tarde, pois, no momento, gozava a ansiedade por rever os amigos. Para passar o tempo, olhava umas vitrines, sem real interesse em coisa alguma. Foi em um desses momentos que vi Elza que passava por traz de mim, refletida em perfil em um espelho à minha frente. Talvez outra mulher não tivesse causado tamanho arrebatamento. Virei-me, e pude vê-la se afastando, em passadas decididas, como quem tem um destino certo aonde ir.

Passado o momentâneo arrebatamento, não resisti ao ímpeto de segui-la. E o fiz. Seguindo-a, para sempre eu registraria na memória figura tão bela de mulher, muito embora não tivesse vislumbrado o seu rosto. Seus cabelos, de castanho claro, eram levemente ondulados e trazidos aparados um pouco acima dos ombros. Vestia blusa branca, de meias mangas que permitiam ver-lhe os antebraços graciosamente pendentes ao longo do corpo, dando elegância ao seu caminhar. Uma lufada de vento permitiu-me perceber que trazia um lencinho azul envolto no pescoço. A saia, talvez um pouco démodé e trazida um pouco abaixo dos joelhos, era plissada e de cor cinza esmaecida, e permitia ver-lhe os contornos dos quadris graciosos que produziam suave e delicioso rebolado. Os sapatos, pretos, tinham saltos medianos, e em muito contribuíam para o seu andar cadenciado e elegante. A pele, pelo que eu vislumbrara dos antebraços e das pernas descobertos, era clara e rosada.

Durante o tempo que a segui, sem alcançá-la, Elza não desviara o rosto para lado algum. Seguia em frente como se não existissem as galerias de vitrines ao seu lado. Logo adiante ela dobrou uma esquina que a levaria à praça da igreja Matriz. Quando dobrei a esquina, Elza entrava na igreja.

Certamente eu a seguiria até ao interior da igreja, porém, nesse instante, ouvi o chamado por meu nome. Virei-me; eram dois dos meus amigos que por ali passavam indo ao local marcado para o encontro. Vi-me envolto em colossal dilema: seguiria adiante, ao encontro dessa mulher para, pelo menos, ver-lhe o rosto; ou faria exatamente o que me propusera fazer nesse fim de tarde: entregar-me à felicidade de rever meus bons amigos. Não precisei decidir, pois eles decidiram por mim. Os momentos seguintes, e os demais que se seguiram, felizes pelo reencontro de amigos, jamais apagariam da memória aquele corpo de mulher. Eu reconheceria Elza entre todas as mulheres do mundo.

domingo, 31 de maio de 2009

Lençóis

Talvez!
Talvez pudéssemos considerar a vida como uma viagem por entre varais e seus lençóis. Os varais e os lençóis como sendo os instantes todos, sem medida, ou, se queremos, medidos a partir do tempo que temos: todos, e cada um de nós, em suas particulares circunstancialidades; o que nos torna, enquanto indivíduos, constantes atores inaugurais.
Deslizam os lençóis ao nosso encontro? ou caminhamos, em passos ondulantes, por entre os lençóis que se nos apresentam? Depende, talvez: o quanto atores somos?
Se os lençóis vêm ao nosso encontro, dentre eles podemos fazer a escolha sob qual passar? E se vamos ao encontro dos lençóis, também assim, todos ou algum em particular é da nossa escolha?
Depende, talvez: o quanto atores somos.
Os lençóis-instantes da nossa existência: qual, ou quais serão as suas cores? e suas estampas? as tramas da sua tessitura?
Talvez pudéssemos pensar cada um dos nossos lençóis como que telas de cinema jamais apagadas e brancas. Se assim os pensarmos: o que suas luzes refletidas nos revelam? Se assim pensarmos, nas telas do cinema: nos nossos lençóis-instantes todos, que atores revelam?
Os lençóis: seu roçar por nossas existências causam, ou deveriam causar, arrepios de gozos ou de medo. Gozos nas colheitas fugazes, talvez, de toda a felicidade que as telas-lençóis nos trazem; ou medo nas telas-lençóis-horrores nas quais roçamos, ou nos envolvemos.
E os lençóis: os de linho, de algodão, de fibras sintéticas, que acolhem nossos sonos, os nossos sonhos, os arrepios dos gozos que temos, a rolagem das nossas insônias; que telas-lençóis serão esses nossos lençóis sobre os quais nos projetam uns tantos instantes das nossas existências?
Lençóis! Talvez sejamos isso: apenas projeções. Enquanto envoltos nos lençóis da cama, talvez perdidos sejamos em algo que fique entre a vida e os sonhos trazidos pelo sono; ou, pesadelos, talvez. E enquanto envoltos nos lençóis-instantes do que supomos ser existência consciente, também aqui talvez perdidos sejamos em algo que fique entre a vida que temos ou poderíamos ter e que é a vida dos nossos sonhos.
E pensar que nesse existir e ser por entre lençóis-panos e lençóis-instantes, tanto pesadelo há.

domingo, 17 de maio de 2009

Aflições de um pai.

Olá, filhão.

Sabe de uma coisa? Essa HP C4480 é multifuncional mesmo, e das boas.
Sabe até o que ela está fazendo? Enchendo meu saco. Deixando-me com cara de trouxa. Esquentando minha cabeça. E fazendo outro montão de coisas, das quais me recuso falar aqui. É boa, mesmo.
Seguinte: já mudei de terminais USB: são 8? Pluguei, ou, usbeizei nos 8.
Num deles, aqueles dois de cima que parecem ser ligados diretos na placa filha da mãe, apareceu uma mensagem, sei lá o que, cliquei, pensei ter achado respostas, mas, apareceu somente uma relação de portas USB possíveis, sem indicar quais são das 8 que temos. (Esse equipamento não sabe ler pensamentos.) Levei o cabo para aquelas quatro de baixo, tentei imprimir, e o documento ficou lá "Imprimindo" E NÃO IMPRIMIU PORRA NENHUMA. Acho que essa HP é analfabeta e não sabe do que estamos falando.

Tem outra coisa: Lá em Configurações > Impressora > Propriedades > Portas, aparece o seguinte:
LPT1 - Porta de Impressora - HP Photosmart C4400 series (é o que está marcado) Depois vem (para economizar linha botei os dois seguintes na mesma linha, mas, lá na tal "janela" aparece um embaixo do outro) disso você sabe.
LPT 2 e 3 - Porta de Impressora (e só)
COM 1 ao 4 - Porta Serial ( e só)
File: Imprimir em arquivo
DOT4_001: HP Photosmart C4400 series (não está marcado) e
Sen: Local Port - Send To OneNote2007

Falamos de USB, e não aparece isso na lista "Portas". Será que tem alguma coisa a ver? Ou será que atrás de LPT, COM, DOT, e sei lá mais o que, está escondida alguma USB e a gente não sabe que lá está?

Outra coisa: lá em "Configurações do dispositivo" aparece: - "HP Photosmart C4400 series", e uma linha de hierarquia que leva a "opções instaláveis". Vou saber que que opção devo instalar se não me dizem pobre leigo que sou, se, e qual opção instalar?

E mais outra coisa: no cantinho de baixo, à direita, ao lado do relógio, aparecem, ao lado do ícone de volume e do antivírus, por enquanto, mais dois: 1 que diz:HP Digital Imaging Monitor, que acho que diz que tem Scanner e Fotocopiadora na parada, e aquele outro idiota que diz: Remover Hardware com segurança.
E eu, pobre coitado, que só quero que esse "hardware" funcione, e imprimir uma coisinhas com alguma insegurança, mas, imprimir.

Para quando você tiver um tempinho... e depois me responda.
Enquanto isso, continuo cá a pensar um montão de coisas desrespeitosas a respeito destes hardwares e softwares, tendo um bocadinho de certeza de que, tecnológicos e lógicos que são, ainda, não podem pensar nada a respeito de mim. Assim, por enquanto, mas com pontinha de frustração, vou pensando que estou um tantinho vingado por antecipação.

Fique bem, filhão. Abração. Até.

(e-mail para meu filho)

sábado, 9 de maio de 2009

Coisas do reino

Era uma vez um reino, pequeno pelos padrões dos grandes reinos ou impérios. Seu povo tinha tudo para ser um povo feliz, mas, por ter vindo de terras distantes, era um povo sem identidade; perdia-se em semblantes carrancudos, e o que mais queria era sugar as tetas do reino. Os cofres reais estavam abarrotados, pensavam, e diziam.
Seu rei, coroado não fazia muito tempo, vivia angustiado. Tinha muito o que fazer, porque assim o povo o exigia; mas, tudo o que havia nos cofres já estava tudo comprometido, e o rei não podia fazer grandes obras. Seus ministros, talvez por serem novatos na função de ministros, talvez por pensarem ser maiores que o rei, gastavam demais.
De tudo, porém, o que mais estava angustiando o rei, era não poder colocar entre os ministros, nem mesmo em função subalterna a esses, um dos homens do povo ao qual pensava dever muito. Afinal, se coroado era como rei, devia muito a esse homem do povo; assim pensava o rei, que queria recompensar esse homem ofertando-lhe uma das tetas do reino. A maioria dos ministros e, principalmente o Primeiro Ministro - que fazia alguma oposição ao rei -, desafetos que eram desse homem do povo, não concordavam com o rei, e o impediam de ter esse homem na corte.
Para piorar tudo, havia o Primeiro Ministro. Este teria pretendido ser o rei; não o foi por causa das causas do reino que o tornaram Primeiro Ministro.
Este, em suas andanças pelo reino, por não ter carruagem custeada pelo estado, usava a mesma carruagem do rei. Nessas ocasiões, para que o povo não o honrassem mais que ao rei, ia adiante da carruagem o arauto do reino, a dizer: - Não é o Rei! Não é o Rei! E o povo sabia que era o Primeiro Ministro que passava; isso o desgostava, e queria ter do reino a sua própria carruagem. O rei não aprovava, e dizia que os cofres do reino não comportavam pagar por outra carruagem.
Essas não eram as causas maiores do reino, mas eram as causas que mais angustiavam o rei e o seu Primeiro Ministro.
Porém, como nas causas de Estado tudo pode ser arranjado, também as causas da angústia do rei e do Primeiro Ministro foram arranjadas, de tal forma que houve satisfação da parte do rei e de seu principal ministro: um dia, sentaram um diante do outro com a intenção de resolverem a suas angústias, e conversaram.
Resultou dessa conversa que o rei pôde colocar o seu protegido homem do povo sob as tetas do Estado, mesmo que para isso teve que inventar uma nova função pública no reino, e dar a essa nova função um nome pomposo, e o Primeiro Ministro, buscando num dos cantos dos cofres do reino todo o dinheiro que precisasse para comprar a carruagem do Estado que também fosse a carruagem dos seus sonhos.
Então, o povo desse reino continuou a ser um povo sem identidade, e continuou a ser um povo carrancudo que continuou a acreditar que os cofres do reino estavam abarrotados de dinheiro; e a acreditar que os cofres do reino fossem gordas e inesgotáveis tetas. O rei, agora não mais tanto angustiado, tinha na corte do palácio o homem do povo do qual pensava dever muitos favores; e o Primeiro Ministro já não precisava mais dos serviços extraordinários do arauto do reino que lhe fosse adiante anunciando que não era o rei quem passava diante do povo.
Este continuou a viver carrancudo; aqueles a não viverem tão angustiados para sempre, ou enquanto dure o reinado do rei e do seu Primeiro Ministro.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Páginas policiais

Serei eu um pervertido "inocente"?
Depois de ler isto aqui, e refletir, é muito provável que você "cole" na minha testa um rótulo de ingênuo ou sonhador; numa permissão ao clichê.
Explicado então vai: acredito no mundo perdido por Adão e Eva, mundo esse de sonho no qual o que realmente tenha valor é a vida; vida em toda a sua plenitude e que seja sinônimo verdadeiro e absoluto de Paz.
Feito este deslocado preâmbulo, vou ao assunto que quero abordar: páginas policiais.
No "meu jornal" elas não existem, embora para chegar às páginas que venham depois, no jornal que vejo todos os dias, meu olhar deslize muito rapidamente sobre elas a tempo de fotografar imagens e títulos dessas matérias.
Novamente eu explico, ou tento, e vou ser mais direto.
Um dia destes um rapaz estava tentando vender-me a assinatura de um jornal. Eu poderia apenas ter dito não, ou melhorado o argumento de que no meu local de trabalho disponho de um exemplar desse diário, e pronto.
Mas, não. Eu disse que estava crescentemente desgostoso com esse tal jornal, e que ao lê-lo não me detinha nas páginas policiais, mas que, mesmo de relance, eu havia notado uma desprezível mudança de paradigma: esse jornal passou a publicar escancaradamente fotografias de corpos humanos abatidos pela violência do dia-a-dia, descartados como se lixo fosse; e que essas páginas haviam se transformado em galeria sórdida de horrores, e desnecessárias no meu entendimento.
O rapaz olhou-me, tendo na face uma escancarada expressão de riso, da qual ainda estou a dever uma interpretação, e me disse:
- Elas fizeram crescer nosso faturamento.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Buracos Negros Sociais

Contou-me uma amiga.

Passara por um processo alérgico, com a pele avermelhada e uns pontos da pele inchada no busto, na altura dos seios e um pouco acima, quase chegando ao pescoço. Coçava.

Por volta das 20 horas foi ao hospital. Lá chegando, cruzou com uma pessoa que, pelas circunstâncias, havia acabado de ser atendida. O hall de espera estava vazio. Na recepção, deparou com duas atendentes que ouviam um médico jovem reclamar por estar cobrindo parte do plantão de um colega. Nem com a sua chegada ele interrompeu o que dizia.

Uma das moças imediatamente veio atendê-la. De onde estavam, seria impossível que, mesmo em meio à conversa, o médico não lhe ouvisse falar dos sintomas. Concluído o preenchimento do prontuário, a atendente avisou-a para aguardar que logo seria atendida. Sentou-se, e esperou.

As reclamações do médico ainda se estenderam por mais alguns instantes. Quando quis, pegou o prontuário e se encaminhou para o consultório chamando-a pelo nome como se na sala de espera houvesse outras e muitas pessoas. Ela o seguiu. Sentou-se à frente do médico, como ele lhe havia indicado. Como ato seguinte ele passou a escrever um receituário.

Ela, para facilitar procedimentos, estava usando uma roupa folgada, e estava sem sutiãs. Por conta, desabotoou a roupa, abaixou-a até o abdômen e perguntou ao médico se não seria melhor ele olhar. De onde estava ele olhou, rapidamente, e concluiu o receituário. Levantando-se, recomendou o uso imediato dos medicamentos dizendo que em duas horas tudo teria desaparecido. Minha amiga foi à farmácia, comprou os medicamentos, começou a usá-los ali mesmo procurando alívio, e rumou para sua casa.

Por volta das 23 horas ela voltou ao hospital, pois, apesar dos medicamentos, tudo estava na mesma, talvez um pouco piorado. Lá chegando, o tal médico já havia ido embora. Enquanto uma das atendentes fazia novo prontuário, a outra ligou para o médico plantonista daquela noite. Tiveram uma conversa extensa, no final da qual ele recomendou, por telefone, que minha amiga continuasse a usar os medicamentos receitados pelo colega, e que o posto de enfermagem lhe aplicasse uma injeção tal. Fizeram. Minha amiga ficou em observação por quase meia hora. Nesse tempo sentiu algum alívio nas coceiras, e foi para casa.

Pelo meio da madrugada, já com o marido em casa o qual chegara de viagem por volta da meia-noite, ela acordou apavorada. A vermelhidão e a pele elevada no busto haviam aumentado, desceram para o abdômen; tinha o pescoço e o rosto um pouco inchados. Voltou para o hospital, agora, claro, acompanhada do marido.

Lá chegando, eram outras as atendentes. Rapidamente elas tomaram conhecimento, pelos dois primeiros prontuários levantados, da situação toda. Imediatamente ligaram para o médico plantonista. Do outro lado havia um médico contrariado, que insistia em dizer que os procedimentos adotados até então pelo colega que o substituira em parte do plantão e por ele mesmo tinham sido os corretos. A chefa da enfermagem foi chamada, e ela passou a conversar com o médico, descrevendo o quadro atual, e rememorando para ele a medicação utilizada. Aumentou a preocupação da minha amiga ao ouvir a enfermeira questionar se não haveria risco de inchaço interno o que viria a prejudicar a respiração. Esse argumento parece que convenceu o médico de que deveria ir até o hospital. Plantonistas da noite dormiam em casa, pois no hospital não havia sala de repouso para os médicos de plantão, disseram para minha amiga.

O médico chegou quase 50 minutos depois, demonstrando estar visivelmente contrariado. Suspeita minha amiga de que o que o apressou foi uma emergência: a chegada de um rapaz que havia se acidentado com uma moto. Não era grave a situação com o rapaz, e ela foi atendida por primeiro.

Logo ao vê-la, quem ficou preocupado foi o médico. Determinou imediatos procedimentos e, realmente, examinou-a. Dizia à enfermeira que o acompanhava que a obstrução das vias respiratória já estava em processo de acontecer, o que complicaria o quadro; que foi muito oportuno terem-no chamado. Passou a considerar o fato do internamento. Por insistência da minha amiga e do marido, foi colocada em uma sala de observação. Em meia hora, talvez em razão dos medicamentos acertados, o quadro alérgico começou a regredir, quase desaparecendo os inchaços. O médico, que já havia atendido o rapaz acidentado, e alegando que precisaria retornar para a casa, insistia no internamento. O casal recusou, dizendo que iam para casa, continuariam o uso da nova medicação, e ficariam atentos. Em qualquer sintoma de retorno do quadro alérgico retornariam ao hospital, antecipando alguns telefonemas para agilizarem o atendimento.

O médico concordou, desde que assinassem um termo de responsabilidade. Assinaram, foram para casa, e o desconhecido processo alérgico foi embora.

Dois dias depois, lendo um dos jornais da cidade, na pagina social minha amiga deparou com a fotografia de um sorridente e feliz casal. A legenda dizia: “O casal de médicos (fulano e fulana) esbanjando simpatia no jantar dançante acontecido na noite anterior à passada.”