quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Sou dependente (continuação)



Reconheço. Sou quimicamente dependente.

E insisto em dizer que não reconheço alguém que não seja dependente da mesma química que me mantém. Pense em alguém isolado do mundo; deste mundo banal do nosso dia-a-dia, mundo esse cada vez mais mergulhado nas tramas da tecnologia e das interações globais, sociais. Melhor! Pense em alguém recolhido a um recanto no qual e do qual não tenha contato com pessoa alguma. Essa pessoa é tão dependente quanto eu sou. Então, você já deve ter percebido que eu tenho a você como alguém dependente quimicamente, tanto quanto eu.

Pois é. Eu, você, qualquer um: somos todos dependentes dessa bolota azul que ilustra esta postagem. Mesmo aquela pessoa da qual se diga que é a mais isolada do mundo, ela também é crucialmente dependente, pois, para viver, precisará comer, beber e se abrigar; e tudo isso é provido pela mesma bolota que me sustenta, e sustenta a você. Agora, eu, e você, provavelmente seremos muito mais dependentes, uma vez que estamos submetidos a interações complexas, o que nos torna uns pobres dependentes.

Neste exato momento, daqui de onde estou olho ao redor. Cercam-me quase que inumeráveis coisas; coisas que são coisas tanto quanto eu. A maioria das coisas que estão ao meu redor e para as quais eu olho, em algum momento tiveram a minha atenção, e foram tocadas por meu trabalho. Sim. A maioria dessas coisas está onde está, e estão como estão, porque dediquei a elas um pouco do meu trabalho; umas mais, outras menos, mesmo que em ínfimos fragmentos de tempo. E cada uma delas, antes de mim, foi tocada por trabalho de outras pessoas. Quantas pessoas? Não sei, e tenho certeza de que jamais o saberei.

Assim como começo a maioria dos meus dias, comecei em um determinado momento deste meu dia alimentando-me com uma fatia de pão, entre outras coisas no café da manhã. Essa trivial fatia de pão... Céus! Quantas pessoas trabalharam para que ela chegasse às minhas mãos, para depois se transmudar em moléculas da coisa que sou. Colhendo nomes e funções de trabalho em cada quadrante da cartografia da bolota azul que me sustenta, e indo longe no tempo, mesmo todos os anos restantes da minha vida serão insuficientes para que eu sequer me aproxime com alguma precisão ao número de pessoas que trabalharam para que essa fatia de pão chegasse às minhas mãos, e me alimentasse.

Por isso sou um dependente, quimicamente dependente do trabalho de um incontável número de pessoas, todas geradas quimicamente por essa bolota azul. E todas, quase, sequer imaginam que fizeram e fazem tanto por mim, e que o seu trabalho me sustenta.

Sou dependente do agenciamento maquínico social; dessa química que é orgânica e inorgânica, doida coisa que é. E para terror dos céticos, graças a Deus.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Sou dependente

A rigor, qualquer um é, e segundo a linha de pensamento aqui desenvolvida, possivelmente não há excluídos da dependência da qual falo. Na minha singularidade pode implicar o acontecimento de um contraditório, talvez um paradoxo. Reafirmo que sou dependente, e não me vejo como um radical em nenhum sentido.

Lá na juventude andei fazendo pose com alguns cigarros. Muito poucos, fumados e não tragados se isso é lá possível, no meio de um grupo de pessoas, necessariamente diante de mulheres. Motivos? que se ocupe das explicações a psicanálise. Naqueles tempos, assim como outros rapazes o fazia, andei pensando que manipular cigarros e fazer com eles alguns gestos medidos rendiam pose e algum charme. Dois fatos, porém, vividos com uma mesma pessoa levaram-me a ser um não fumante convicto: um beijo de língua numa garota linda que tinha cheiro e gosto de cigarro; e o que ela me disse pouco depois: que ela não podia viver sem cigarros. Achei então que ela podia viver sem mim, e que eu poderia viver sem ambos, ela e o cigarro.

Houve um tempo em que havia enormes “filas do feijão”, alongadas por momentâneas escassezes desse grão vegetal. Nunca entrei numa fila dessas, mas conversei com pessoas que reclamavam muito por terem passado incontáveis horas em várias filas para comprar feijão, e diziam essas pessoas que não podiam viver sem feijão. Hoje, faço e me farto com uma boa feijoada, e se estiver diante de um feijão comum bem preparado, repito o prato. No entanto, passo dias – e sei que posso passar meses ou anos – sem comer feijão.

Quando vim morar aqui no oeste do Paraná, logo me vi incluso em falantes “rodas de chimarrão”. Se me lembro bem, em quase todas elas, entre tantos assuntos fascinantes sobre os quais se poderia falar, dois eram reiterantes: falar mal da vida das pessoas ausentes da “roda do mate”; e que não se podia viver sem o chimarrão nosso de cada dia; e umas pessoas diziam ter dor de cabeça ou algum mal estar ao se absterem dessa erva. Hoje, quando e se quero, aprecio e gozo o prazer dado por um chimarrão quente, amargo e bem servido, e não esquento a cabeça com o que poderiam estar dizendo de mim todas as vezes que estou fora das rodas de chimarrão.

Sou mais ou menos livre de algumas, ou, de muitas coisas, mas, reconheço-me um dependente. E falo disso em outro momento.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

A pilastra da existência

A vida, enquanto projeção sob a ótica humana, é sustentada pela fé.
Aqui, talvez fosse prudente dar um crédito à ciência e à razão, principalmente se a elas se fizer apressado apelo, sem dar tempo à profunda reflexão. Postas em prática desta maneira, certamente se chegará à conclusão de que o argumento acima é frágil, e não resiste à menor crítica.
Mesmo ciente dessa possível fragilidade, eu mantenho o argumento, e o reformo, extraindo dele qualquer fragmento de modalização. Portanto, eu reafirmo: a Vida é sustentada pela Fé, muito embora os meus sentidos contrariem isso a todo instante, e a todo instante eu precise dar créditos pela Fé.
Se não, vejamos: tudo o que meus olhos vêem é apenas uma projeção de quase infinitas coisas que não vejo. E mesmo que eu use de recursos óticos os mais desenvolvidos pelo atual estágio dessa tecnologia, estarei vendo parcialmente, pois existirão coisas, muitas coisas, que estarão muito além do que a tecnologia atual me permite ver.
Ouço, cheiro, sinto, degusto coisas, e muitas, mas muitas coisas mesmo escaparão à sensibilidade dos meus sentidos que me permitem estar em presença das coisas.
A todo instante sou convocado a dar crédito, pela fé, aos sentidos das palavras que a mim chegam trazidas pela vibração do ar. Eu não vejo isso, mas, é assim que funciona, e tenho que pôr fé nisso. A todo instante eu preciso pôr fé nas coisas.
Afinal, quem é o José que fala comigo? É mesmo o José, ou o José já terá outro nome ou atenderá, como “cítrico”, a outro propósito no qual se põe fé? Será mesmo José? Ou será Josefina?
Se o José não tem Certidão de Nascimento que ateste que existe, mesmo que eu veja esse José por inteiro à minha frente, quem me garante que o José existe? Sem documento não existe!
O Doutor que me assiste estudou o mesmo que o outro Doutor, e até pode saber mais do que esse outro Doutor, mas se alguém não disse umas palavras, que são confirmadas por um tal de Diploma, então o Doutor que me assiste não é Doutor. Ah!, sim, existe, mas não é doutor: pode ir pra cadeia porque é charlatão. E não adianta eu botar fé no “doutor” que me assiste.
O pãozinho francês meu de cada dia custa R$ 4,98 o quilo numa padaria. Eu tenho que acreditar nisso. E tenho que acreditar que naquela outra padaria ele custa R$ 4,79. Não sei por que, mas tenho que acreditar nisso.
Neste último domingo, fizeram-me acreditar que o Felipe Massa seria o vencedor do Grande Prêmio da Hungria de Fórmula Um, e seria o primeiro colocado na classificação atual do campeonato. A três voltas do final da corrida, uma lufada de fumaça azul fez essa minha crença virar fumaça, e o Massa é o terceiro da lista geral.
A todo instante eu preciso acreditar em algo, assim como acreditei que escreveria algo muito diferente do que escrevi, quando comecei a escrever aqui.
É. A vida é sustentada, mesmo, pela fé.

sábado, 19 de julho de 2008

Perda dos sentidos

Interessado em melhorar suas chances em um concurso público, que ocorreria alguns meses depois, procurou-me um rapaz propondo que o submetesse a uma revisão dos conhecimentos de Língua Portuguesa. Concordei, e concertamos dois encontros semanais.

No primeiro encontro perguntei-lhe sobre as leituras que fazia. Disse-me que lia pouco, e que no momento se interessara e lia um livro que, pelos comentários que fez, deduzi tratar-se de um livro classificável como de auto-ajuda. Incentivei-o a ler mais, e que adicionasse às suas leituras, alguma coisa de jornais e revistas.

Cada um dos encontros seguintes eu os iniciava perguntando pelas leituras que fizera. O rapaz sempre falava dos trechos lidos no tal livro, e o que dizia a respeito pareciam-me idéias um tanto confusas. Pedi que em um dos próximos encontros trouxesse o livro para eu conhecê-lo.

Tendo-o em mãos, li a sinopse na contracapa. Depois, corri os olhos por umas páginas um pouco anteriores ao ponto onde estava o marcador de páginas, próximo ao meio do livro.

Chamou-me a atenção um parágrafo o qual li por inteiro, pois me pareceu conter o principal fundamento do livro, segundo o que eu lera na sinopse. Esse parágrafo, com pouco mais de uma dezena de linhas, era encerrado por um período de não mais de três linhas, e continha duas palavras fundamentais para o assunto abordado pelo livro. Pedi para o rapaz ler esse período e falar do seu entendimento dado a esse pequeno recorte.

Leu, e a explicação que ouvi, confusa, não tinha nada a ver com o que dizia o período, e longe do propósito do livro.

Disse-lhe para ler o parágrafo todo, e pensar no que acabara de ler; e disse-lhe que, enquanto fazia a leitura com toda a atenção, eu iria buscar um dicionário. Fiz isso, com a intenção de que meu gesto fosse visto como um signo indicativo da necessidade de redobrar os cuidados na leitura.

Quando retornei, ele disse ter concluído a leitura, e se distraia fazendo as páginas deslizarem pelo polegar direito. Perguntei pelo que lera, e repetiu o mesmo comentário de antes.

Indiquei-lhe uma das duas palavras, das quais deveria procurar pelos significados. Fez isso demonstrando ter pouca familiaridade com o dicionário, pois, por fim, tive de ajudá-lo. Encontrou a primeira; leu até a metade dos significados possíveis, e repetiu o mesmo entendimento dado antes, demonstrando certo grau de satisfação. Pedi que voltasse ao dicionário e lesse até o final os significados, pois era a partir do ponto onde parou que encontraria os significados que dariam sentido à sua leitura.

O livro falava de um pai que passava ensinamentos ao filho, de como amealhar fortuna. No parágrafo em questão, o pai dizia que a maioria das pessoas não sabia discernir o ativo do passivo, por isso não era rica. O tempo todo o livro vinha falando disso. O rapaz, ao ler o período no qual o pai falava disso com mais precisão, e depois o parágrafo inteiro que melhor entendimento dava ao conteúdo, disse-me que o pai dizia que as pessoas ricas eram ativas, e por serem ativas eram ricas, Já uma pessoa passiva, esperava que tudo caísse do céu como um milagre, e que as coisas não eram bem assim, pois que as pessoas deviam ser ativas, e por isso teriam mais chances de serem ricas.

No resto do encontro discutimos a importância de compreender os significados das palavras, para que essa compreensão produza conhecimento.

A partir daí, a leitura do livro passou a ter outra dimensão para esse jovem. Nos encontros seguintes, isso ficou muito claro.

Bem. O rapaz havia feito todo o seu estudo em escolas particulares. Havia “passado” em um vestibular em uma instituição universitária também particular. Do curso que havia escolhido, cursou apenas seis meses. Desistiu, pois o tal curso exigia conhecimentos das exatas, matemática e física, nas quais dizia ter dificuldades.

Fico pensando se sua escolha tivesse recaído em alguma das humanas, tão inexatas.

Pois é. Tudo isso dá o que pensar. Coisa para outras postagens futuras, quem sabe.