sábado, 19 de julho de 2008

Perda dos sentidos

Interessado em melhorar suas chances em um concurso público, que ocorreria alguns meses depois, procurou-me um rapaz propondo que o submetesse a uma revisão dos conhecimentos de Língua Portuguesa. Concordei, e concertamos dois encontros semanais.

No primeiro encontro perguntei-lhe sobre as leituras que fazia. Disse-me que lia pouco, e que no momento se interessara e lia um livro que, pelos comentários que fez, deduzi tratar-se de um livro classificável como de auto-ajuda. Incentivei-o a ler mais, e que adicionasse às suas leituras, alguma coisa de jornais e revistas.

Cada um dos encontros seguintes eu os iniciava perguntando pelas leituras que fizera. O rapaz sempre falava dos trechos lidos no tal livro, e o que dizia a respeito pareciam-me idéias um tanto confusas. Pedi que em um dos próximos encontros trouxesse o livro para eu conhecê-lo.

Tendo-o em mãos, li a sinopse na contracapa. Depois, corri os olhos por umas páginas um pouco anteriores ao ponto onde estava o marcador de páginas, próximo ao meio do livro.

Chamou-me a atenção um parágrafo o qual li por inteiro, pois me pareceu conter o principal fundamento do livro, segundo o que eu lera na sinopse. Esse parágrafo, com pouco mais de uma dezena de linhas, era encerrado por um período de não mais de três linhas, e continha duas palavras fundamentais para o assunto abordado pelo livro. Pedi para o rapaz ler esse período e falar do seu entendimento dado a esse pequeno recorte.

Leu, e a explicação que ouvi, confusa, não tinha nada a ver com o que dizia o período, e longe do propósito do livro.

Disse-lhe para ler o parágrafo todo, e pensar no que acabara de ler; e disse-lhe que, enquanto fazia a leitura com toda a atenção, eu iria buscar um dicionário. Fiz isso, com a intenção de que meu gesto fosse visto como um signo indicativo da necessidade de redobrar os cuidados na leitura.

Quando retornei, ele disse ter concluído a leitura, e se distraia fazendo as páginas deslizarem pelo polegar direito. Perguntei pelo que lera, e repetiu o mesmo comentário de antes.

Indiquei-lhe uma das duas palavras, das quais deveria procurar pelos significados. Fez isso demonstrando ter pouca familiaridade com o dicionário, pois, por fim, tive de ajudá-lo. Encontrou a primeira; leu até a metade dos significados possíveis, e repetiu o mesmo entendimento dado antes, demonstrando certo grau de satisfação. Pedi que voltasse ao dicionário e lesse até o final os significados, pois era a partir do ponto onde parou que encontraria os significados que dariam sentido à sua leitura.

O livro falava de um pai que passava ensinamentos ao filho, de como amealhar fortuna. No parágrafo em questão, o pai dizia que a maioria das pessoas não sabia discernir o ativo do passivo, por isso não era rica. O tempo todo o livro vinha falando disso. O rapaz, ao ler o período no qual o pai falava disso com mais precisão, e depois o parágrafo inteiro que melhor entendimento dava ao conteúdo, disse-me que o pai dizia que as pessoas ricas eram ativas, e por serem ativas eram ricas, Já uma pessoa passiva, esperava que tudo caísse do céu como um milagre, e que as coisas não eram bem assim, pois que as pessoas deviam ser ativas, e por isso teriam mais chances de serem ricas.

No resto do encontro discutimos a importância de compreender os significados das palavras, para que essa compreensão produza conhecimento.

A partir daí, a leitura do livro passou a ter outra dimensão para esse jovem. Nos encontros seguintes, isso ficou muito claro.

Bem. O rapaz havia feito todo o seu estudo em escolas particulares. Havia “passado” em um vestibular em uma instituição universitária também particular. Do curso que havia escolhido, cursou apenas seis meses. Desistiu, pois o tal curso exigia conhecimentos das exatas, matemática e física, nas quais dizia ter dificuldades.

Fico pensando se sua escolha tivesse recaído em alguma das humanas, tão inexatas.

Pois é. Tudo isso dá o que pensar. Coisa para outras postagens futuras, quem sabe.

domingo, 13 de julho de 2008

Plantar trilhos

Eram os últimos momentos da última aula daquela noite. Os alunos, o primeiro ano do Ensino Médio.
Como resultado de uma confusão na compreensão de trecho de um texto que havíamos acabado de ler, estávamos em acalorada conversa sobre a diversidade de sentidos dados pelas preposições. Lá no fundo da sala, apático, estava um aluno que não mostrava o mínimo interesse; nesse e em outros assuntos que vínhamos tratando naquele início de ano letivo. Estávamos pelo meio do primeiro bimestre. O mesmo desinteresse havia em relação a outras disciplinas.
Em um dado momento em que uma aluna dizia ter-lhe “caído a ficha”, pois finalmente entendia a finalidade das preposições, ouviu-se vindo lá do fundo da sala:
- Besteira! Essa baboseira é tudo besteira.
Essas palavras vieram do aluno que se mantinha alheio a tudo. Em seguida, dirigiu a mim o seguinte questionamento:
- Por que estudar? Não é professor? Por que ter tanto conhecimento, se a gente vai morrer mesmo, não é?
Hoje eu tenho certeza de que lhe dei a mais idiota das respostas, pois eu disse:
- Exatamente porque se sabe que a morte é uma certeza, é que devemos procurar sempre por mais conhecimento.
Mal deu tempo de me arrepender de ter-lhe dado essa resposta impensada, ouviu-se o sinal de final das aulas. Os alunos saíram, desejando-me boa semana. O aluno foi dos primeiros a sair, e sequer olhou na minha direção.
Devido a cursos que eu faria, e à agenda de reunião pedagógica, voltamos a nos reunir quase quinze dias depois. Eu já soubera que o aluno do fundo da sala havia desistido de estudar, e fora morar em outro Estado à procura de trabalho. Nunca mais o vi.
Queria ter tido a chance de conversar, de procurar por outros argumentos dar-lhe outros sentidos para a vida, que fazem do Saber algo que não tem preço.
Talvez tudo fosse diferente, se eu tivesse tido a chance de dizer-lhe algo semelhante ao que ouvi, quando vi o filme Sob o Sol da Toscana. Nele, a escritora Frances Mayes, interpretada por Diane Lane, após a separação, decepções e achar-se sem Norte para a vida, quase que num impulso faz uma viagem de poucos dias para a Toscana. Lá, também cedendo a um impulso, acaba comprando uma casa também quase em ruínas. Envolta em muitas surpresas trazidas por sua nova realidade, e em um momento em que quase se desespera ao perceber ter cometido mais um erro, ouve do corretor que lhe vendera a casa, o qual viria a ser um dos seus novos amigos, que, em algum lugar na Suíça, havia uma estrada de ferro que fora construída antes mesmo do surgimento do trem. A quem perguntasse o porquê da estrada de ferro, seus construtores diziam que quando o trem surgisse, a estrada de ferro já estaria pronta.
Talvez, com um argumento semelhante, eu convencesse aquele jovem de que a vida tem para cada um de nós um trem novinho em folha, a cada curvatura do tempo, e o que espera de nós é que sejamos plantadores de trilhos. Apenas isso.